domingo, 24 de maio de 2020

...e o sono da razão ainda produz monstros. Um breve ensaio contemporâneo acerca da ignorância e do desprezo pela intelectualidade

É factível termos um assomo subconsciente, quase epifânico, diria- outros talvez necessitem algum tempo para vir à sua mente-, quando ouvimos, mais uma vez, depois de ter sido essa máxima histórica usada em discursos de índole filosófica, escritos eruditos e entraves políticos, éticos, sociais e de múltiplas naturezas, que o sono da razão produz monstros.

A robustez desta redação concebida por Francisco de Goya, artista plástico espanhol contemporâneo ao período do romantismo e rococó europeus, numa de suas telas em que a oração faz-se mais inolvidável do que a própria pintura, versa acerca da aversão aos estudos; apego à ignorância; desprezo pela intelectualidade e a fácil sujeição à constante sugestionabilidade. Mentes perigosas; antros das mais insensatas conclusões; das mais insustentáveis convicções pautadas na desinformação, estão fadadas a cair na vala comum, sem qualquer licença e propriedade argumentativa.

É a figura humana provida da capacidade de deliberar acerca de um objeto, de uma tese ou de argumento, por tão somente ser dotada da razão, não obstante uma ignóbil parcela de indivíduos prefira não se utilizar desta faculdade tão poderosa. Mais do que nunca o cenário global está polarizado, as opiniões se dividem entre certos e errados, dificilmente entre quem respeita as duas óticas e esses, não raro,  são quase rechaçados por não tomarem um dos lados.

A formação e o cumprimento do papel de cidadão com a prática da justiça, com a idoneidade, com a música, com a leitura, com a escrita – atreladas à práxis da gramática e das artes-, formam o homem perfeito idealizado por Platão. Todavia sem buscar a maestria, que não nos utilizemos da falsa erudição, de pensamentos corrompidos, de opiniões respaldadas na nescidade que iludem o incauto que, atraído como que inseto pela luz ofuscante não enxerga os fatos à sua frente.

Marcus Alves

domingo, 17 de maio de 2020

A solidão das pessoas dessas capitais


Solidão. Sentir-se só. Afinal, quem é que nunca se sentiu assim? Solitude. Estar em contato consigo mesmo. Afinal, quem é que nunca quis estar assim? A grafia é parecida tão certo como a dissemelhança entre as circunstâncias que levam aos dois estados. Decerto, ambos os termos confundem a quem enxerga apenas com os olhos. Contudo, é factível compreendê-los em sua essência.

A solidão surge por um vazio nos recônditos da alma; pela desconexão com o mundo ao redor; pela sensação de ser incompreendido pelos demais; pela ausência de relações que talvez lhe aprouvessem e alguns outros coeficientes motivadores. Quando fala-se de solitude, porém, aquele que observa de fora tem a falsa impressão de que a pessoa não está nada bem, num estado de sofrimento; de resignação da convivência com seus pares. O estado de solitude está além do seu significado. É um estado de espírito, de paz, de plena convivência consigo mesmo. Em não havendo a necessidade de estar com outras pessoas como preenchimento de vazio, não há solidão. Mas mesmo uma pessoa extrovertida pode sentir-se só vez por outra. Há esses contrapontos a serem observados.

O imediatismo e os ruídos da vida moderna obscurecem nossos pensamentos e nos distraem, levando-nos cativos à tv como plano de fundo, à navegação demasiada na internet que adentra à madrugada e aos anseios de cada dia dentro do exíguo espaço de tempo que temos para nós mesmos dentro da rotina. Mas não é sempre assim. O ser humano sente a necessidade de amar e, mais ainda, ser amado. Mas porque às vezes despendem todas as suas energias em querer estar com alguém ou se distrair de si? Do que nós temos medo? Por que é assustador questionarmos a nós mesmos? O que tememos em estar a sós com nossos pensamentos?

Se permitir alguns momentos na nossa própria companhia é uma ótima maneira de meditar, relaxar em contato com a natureza, numa biblioteca, numa exposição de artes e em outros lugares inspiradores. Métodos simples como esses de reduzir as ansiedades e o estresse do quotidiano fazem bem ao corpo e nos dão paz interior. Que não procuremos a todo momento meios de dissimular o silêncio só porque estamos como que em condição de isolamento, mas não sendo o caso. Que viajemos ao nosso âmago mais vezes sem medo de parecer egoístas e rasos à quem só enxerga a nossa superfície, sem medo de nos fazermos as grandes perguntas que não calam e sem medo de enfrentar os fantasmas que nos assombram.

O renascimento de um novo eu começa quando esquadrinhamos as profundezas da nossa consciência. Estar só, sem aproximar-se do abismo do isolamento total, pode nos fazer maiores e mais fortes. Daí emergem as grandes transformações, dos nossos períodos mais silenciosos.

Marcus Alves

domingo, 10 de maio de 2020

Resignação do eu, da realidade e das relações humanas que são pertinentes à vida


Ansiedade, depressão, desejo desmedido, ávida busca por atenção, popularidade e tentativa de fazer parte de um grupo são vontades advindas da longa e constante imersão da criança, do jovem e do adulto nas redes sociais. As relações humanas, o verdadeiro afeto, as conversas familiares, os bons momentos juntos, as boas memórias daquela viagem inolvidável, a expressão dos sentimentos: as alegrias, as tristezas, os bons anseios etc. Coisas que vão para além das telas dos computadores e daqueles que superam a população mundial. Os smartphones.

Em tempos tão efervescentes onde muita coisa acontece num exíguo espaço de tempo, vez por outra algumas dessas estão sob os nossos narizes, mas não estamos apercebidos disso. No país cuja face voltada para o exterior mostra-se hospitaleiro, alegre e de bem com a vida, a final aqui é o “país do carnaval”, põe-se em xeque a saúde mental – diga-se psíquica-, dos seus mais 5% considerados pela Organização Mundial da Saúde, com base em estudos executados a partir de 2005 e mais 10 anos à frente – diagnosticados com depressão, ainda que esteja em voga a busca pelo bem-estar mental interior. Mas não tão somente o estilo de vida particular a cada um destes que padecem dessa enfermidade estão sob a mira dos pesquisadores, mas sim todos nós passageiros dessa vida.

Atendo-me à este parêntese que agora abro, penso fazer bem em lançar mão da música Dust in the Wind(Poeira ao Vento) (Kansas, 1978) – simplificando para os amigos hei de citar um excerto traduzido que, cabe muito bem à este simples artigo:


“Eu fecho meus olhos

Apenas por um momento
E o momento se foi
Todos os meus sonhos
Passam diante dos meus olhos, em curiosidade
Poeira ao vento
Tudo o que eles são é poeira ao vento”

(Kansas, 1978)

Vão se perdendo as conexões afetivas, familiares e físicas para dar lugar à sentimentos, expressões de afeto e à construção subjetiva de novos laços pois não mais fazemos parte de um único círculo que é o familiar, mas sim também de uma aldeia global que são as redes sociais e seus atores, da ordem de bilhões.

Caríssimos amigos, que não resignemos nossas próprias vidas para viver virtualmente a vida alheia, que não façamos sacrifícios desmedidos – principalmente as mulheres bombardeadas pela indústria da beleza, sendo impelidas a seguir determinados padrões, tentando à duras penas serem aceitas e se encaixarem em certos parâmetros e ditames de normalidade. Quanto aos homens, a busca pelo corpo perfeito pregado e vendido pelos grandes influenciadores tem prejudicado a saúde de uns e suplantado a autoestima de outros, por estes não serem bem quistos ao olhos de alguns  quanto aos seus dotes físicos se comparados a uma outra parcela de homens corpulentos e musculosos, e supostamente mais bem-sucedidos em engendrar relacionamentos com o sexo oposto. No entanto essas são pessoas vazias de si mesmo, de conteúdo, de vivência como experiência. Não se inspirem neles.

Amem seus verdadeiros amigos nas rodas de conversa, nas suas casas, não através duma simples tela e de uma simples rede que, ao clique uma amizade pode ser instantaneamente desfeita. Amem seus pais e avós, respeitem o seu próximo. A vida, seus momentos e nossos sonhos são, afinal como poeira no vento. Apenas viva.

Marcus Alves

domingo, 3 de maio de 2020

O ladrão de festa


O ladrão de festa...ah, esse roubou, e muito bem uma festa. Mas antes de julgarem o tal, não o interpretem mal, pois ele roubou a festa, não roubou durante o seu desenrolar.  Afinal, ele que não é besta nem nada, não queria ser dado como um fora da lei...ele não era dessas coisas, pois era direito, educado e chegara a ser um pouco solitário, talvez porque gostasse ou porque se sentisse melhor assim.

É fato que todos gostam de se divertir, até aqueles mais ranzinzas têm sua forma preferida de sair da rotina. Porém o Ladrão de festa era tímido, um pouco solitário, às vezes fechado no seu mundo – o que não tem nada a ver com as características de um ladrão no sentido literal – porém era aberto à quem lhe  permitisse confissões, segredos, novidades e preferência como humano, pessoa, de fato, que ele era. E assim é o Ladrão de festa.

Sabe-se que para ganhar pessoas, fazer amigos, manter uma boa comunicação com vizinhos é tarefa pra corajosos na sociedade contemporânea em que se vive, onde todos estão com muita pressa, sem muito tempo pra conversar, sem tempo pra socializar, pois estão cada vez mais fechados no seu próprio mundo...é só uma chusma de gente andando pra lá e pra cá durante todo o dia. Não sabe como não se batem de frente uns com os outros, nem mesmo olham-se nos rostos. Visando somente o “eu” lá se vão.

Foi-se o tempo das prosas entre vizinhos na porta de casa durante a hora do dia que lhes conviessem, geralmente à noite. Foi-se o tempo das confraternizações familiares sinceras, que cá entre nós, hoje são minoria. É só chegar, comer, beber e tchau! E foi numa dessas confraternizações que o Ladrão não recebeu o seu convite. Bem, ele nada pôde fazer, afinal foi sempre calado e muito tímido, porém sutil, sem muita intimidade com outros. E foi aí que se deu o grande roubo, que é mais simples e divertido do que parece.

Era noite. Na residência vizinha transcorria uma enorme festa, dessas com Dj e tudo...como uma boate ao fim de semana. O som da batida ecoava ao longo da rua, que a essa hora já não havia transeuntes. Jogos de luzes, Dj “arrebentando” nas mixagens, estilos variados das inúmeras vertentes musicais e pessoas se divertindo. Percebia-se pelos gritos de “Bis!”, “Uhull!”, “Vamos lá!”. Mas havia uma pessoa fora deste grande evento, o Ladrão de festa. E foi nesse momento que ele que já estava no sofá, à frente da televisão, sem sono e comendo que ele decidiu roubá-la, ou pelo menos uma partezinha dela.

Aos poucos foi se mexendo, sacudindo o esqueleto...curtindo o som alheio que ele decidiu que entraria na dança, mesmo sem ser chamado. De modo sutil e despercebido ele o fez. Decidiu que ia dormir. Desligou a Tv e...dormir? Não, de formal alguma! Longe da vista daqueles que há muito já tinham ido dormir, sem fazer barulho pôs-se a dançar. Dançar muito, pois o ritmo era contagiante e ele não podia se segurar, pois ele estava na festa, mas não estava. Sua festa era particular, só ele e ele mesmo apesar do espaço pequeno em que se encontrava. Sozinho divertiu-se muito, talvez mais até do que alguns que estavam, de fato, presentes naquele meio.

Ele estava feliz, por fazer parte da grande celebração que, por sinal, foi digna de comentários, e dos bons. Nesse momento ele percebeu que um convite era só mais um pedaço de papel perguntando implicitamente se você deseja ir ou não a um determinado evento, que se for de médio ou grande porte, nem darão por sua falta, a não ser que seja de bons amigos próximos e sinceros. Ele percebeu, também, que não é preciso muito para se fazer feliz  e que tudo só depende da própria pessoa.

Sem saber, nesse momento ele discordou, nesse sentido, de um dos maiores ícones da MPB, o grande Tom Jobim, que já dizia, num de seus maiores, ou talvez maior sucesso, a canção Wave, cuja ele finaliza as duas estrofes iniciais dizendo que “é impossível ser feliz sozinho”. E o querido Ladrão tornou isso possível, divertindo-se, talvez, até mais do que quem estava lá.
Esse foi, e é...ou talvez ainda seja e não sabe-se se continuará sendo o Ladrão de Festa.

Marcus Alves